Ela tinha acabado de sair do funeral de seu pai. E pensava consigo mesma: preciso de uma anestesia geral, ou não conseguirei ultrapassar essa semana. A dor era tão intensa, que por vários segundos ela sequer ousava respirar. Lembrou da festa em que estivera há um mês atrás, tão feliz e inocente, quando nem sonhava que seu pai teria um câncer devastador que o levaria em três míseras semanas. A morte o alcançaria sem aviso-prévio, sem chances para qualquer compreensão ou expiação de culpa: tinha sido tudo puramente dor e sofrimento.
Nada do que ela viveu até ali a tinha preparado para aquele momento, aquele exato momento em que ela atravessava os pavilhões do cemitério em direção ao próprio carro. Até o sepultamento, ela tinha um objetivo, tarefas a cumprir, obrigações sociais, pêsames a receber. Mas agora! "E agora?" Era só o que ela conseguia se perguntar.
Então, vieram-lhe flashs de si mesma, sorrindo e flertando com um cara meio hippie, meio intelectual, totalmente anacrônico que encontrara na festa. Lembrou que ele a tinha convidado para fumar uma massa "O Oswaldo saca? o dono da casa? tem umas coisas de qualidade..." disse, levantando as sobrancelhas, sugestivo. Ela se sentiu tentada, mas não tinha fumado até os seus 29 anos, não seria agora que iria começar... recusou e saiu dançando pela festa.
Pegou o celular e sem pensar digitou o número:
- Oi Oswaldo, como vai?
- Tati??? é vc??? soube de seu pai, gostaria de ter ido ao enterro,.... mas... como que cê tá?
- Na merda, óbvio... não liguei pra falar disso, preciso de uma coisa boa, saca?
- Você tá falando do quê???
Parada na porta do carro no estacionamento do cemitério, mal se importando com quem poderia ouvir ou não, à beira da histeria ela disse, aos berros:
- De drogas, caralho!!!!!
- Porra Tati, que merda é essa? tá me achando com cara de traficante???
Constrangida e meio sem saber como se desculpar, ela desligou o celular e entrou no carro, encostou a cabeça no volante e tentou não pensar, não respirar, não sentir. Mas sentia, sentia tudo. O celular tocou naquele ritmo irritante que eles possuem quando tocam nas horas mais miseráveis de sua vida. Pensou em não atender. Mas era o Oswaldo, ela tinha que se desculpar. Atendeu.
- Ohh Oswaldinho, des...desculpa - quase soluçando
- Tati, olha vai nesse hotel, vou te mandar um endereço por sms, procura por um cara chamado Betão, Gilberto Rodrigues, avisei a ele que você pode dar uma passada lá agora à tarde, lá tem o que você tá procurando. Ah.. sinto muito por seu pai... não sei se já disse... em todo o caso, tamos aí, falou?
Sem saber o que pensar ou decidir, ela disse - o...o...obri-ga-da.
Olhou ao seu redor, todos já haviam partido. Em algum lugar atrás de si, estavam a vala, o caixão e o corpo inerte de seu pai que seria, em breve, devorado pelos bichos da putrefação. Ela pode sentir novamente aquele cheiro amarelado e acinzentado de formol e doença, nauseante.
Deu partida no carro e saiu sem rumo. Duas horas rodando a cidade... dor incessante. 120 minutos de uma tentativa inútil de não sentir nada. Pegou o celular e leu o último sms recebido.
A porta do quarto 1114 abriu e dentro estava um cara baixinho cabeludo, com cara de gente boa, disse apenas: - Entre - e sorriu, um sorriso gentil até. Indicou uma poltrona super confortável, ela desabou.
- Seja bem vinda, o Oswaldinho é meu truta, ele disse que você viria. Ele só esqueceu de me dizer que eu deveria ter feito a barba, olha pra mim... - disse ele passando a mão pela barba mal feita - recebendo em meu hotel uma mulher linda como você, com essa cara de lixo...
Ela pensou em falar do pai, fazê-lo se sentir mal por estar lhe passando uma cantada em hora tão amarga. Mas sentiu a dor latejar novamente e respondeu, tentando um quase sorriso:
-Obrigada pelo linda, mas eu não vim aqui pelos elogios ... - tentando parecer agradável, afinal ela também deveria estar com a cara na merda.
- Então... a senhorita deseja... - e esperou que ela terminasse a sentença.
- O que você tem de mais forte?
Ele olhou desconfiado e perguntou: - tem certeza? Você não me parece habituada...
- Tenho certeza absoluta e posso pagar quanto for..
- Tu já usou U2?
- A banda??? - balançou a cabeça confusa - ah não importa...é forte?
- Se é forte??? - gargalhou - não existe nada mais forte que isso! Coca e êxtase, buuuuuuummm - e fez um gesto com as mãos simulando uma explosão da cabeça.
Ela pensou: "deve ser mais suave que um tiro nos miolos".
- Manda!
Amanhecia, quando a terceira dose da droga começava a passar o efeito. Ela se viu nua sob os lençóis de cetim negro que pareciam ter se fundido à sua pele. Betão, magro, pálido, franzino, de pau minúsculo, jazia ao seu lado, inerte. E ela começou a entrar em parafuso, começou a conjecturar se não estaria com alguma maldição, todas as pessoas em que tocava morriam. "Meus deus", pensou confusa, esfregando os olhos, tentando decidir o que fazer... quando Betão se virou de bruços e soltou um ronco profundo cheirando a whisky.
Alívio. E então, desespero.
"Que porra eu tô fazendo aqui?". levantou e começou a vestir, desajeitadamente, as roupas que estavam espalhadas pelo chão. E decidiu que iria sair de fininho. Ao abrir a porta do quarto, Betão gritou : - é mil reais, moça!
- Mil reais?!?
Sentando na cama, com cara de sono, mas sorrindo, ele disse: - sim, senhora, cada dose é 250 e você tomou 4.
-Só lembro de três... enfim... você aceita cheque???
- Aceito não dona, mas como você é truta do Oswaldinho faço uma exceção...
Após preencher o cheque, ela o entregou a ele.
- Obrigado dona, a trepada foi cortesia da casa - e novamente lhe dirigiu aquele sorriso gentil.
No elevador, ela pensava consigo mesma: "mas que merda Tatiana, você se drogou, trepou com um cara desconhecido, ainda por cima traficante... porraaaaaaaaa sem camisinha, caralho!!! O que você está querendo? se matar? Nunca mais volte àquele quarto de hotel, nunca mais, nuncaaaaaa..."
O elevador chegou ao saguão, tudo tão vasto e vazio àquela hora da manhã, então ela sentiu uma pontada: seu pai estava debaixo da terra, inalcançável, inatingível... olhou por uns segundos os botões do elevador, fechou os olhos e apertou o número 11. Toc-toc. Um Betão, com cara de quem não está entendendo nada, abriu a porta. Sem esperar convite, entrou. Evitando olhar pra ele, disse: - meu pai morreu!