quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Uma merda completa


“Haverá um dia, algum dia qualquer. Nesse dia tudo será bom, encontrarás as pessoas que queres ver, comerás a comida que mais gostas, e tudo o que acontece é o que querias que acontecesse. Se ligas o rádio, estará tocando tua música favorita, (...) Isso só acontece apenas uma vez na vida, por isso tens que estar preparado. É como um desvio, como quando estás dirigindo para um lugar e te distrais, e quando vês pegou o caminho errado e já não podes voltar atrás. Esse dia é assim: um desvio! E é muito importante, porque podes escolher por onde seguir seu caminho: se por esse caminho que não é bom ou não! Por isso temos que estar muito atentos. Porque existem muito poucas coisas boas na vida. E se tu as perde porque passam desapercebidas, ou tu estás pensando em outra coisa, seria uma merda! Uma merda completa!”


Trecho do filme "Princesas", de fernando León

Ode à maturidade

Se eu pudesse ser qualquer pessoa, eu seria eu mesma.
Se eu pudesse amar qualquer pessoa, amaria a mim mesma.


Sento-me sobre as minhas carnes e me admiro serena no espelho da mente. Sinto minhas veias pulsarem, transbordando o orgulho que me arde: pela minha idade, pelas minhas experiências. Por tudo que em mim carece e por tudo que em mim exacerba. Me miro e me vejo no espelho da mente, onde repousa lânguido o olhar, que se esconde e se revela piscante entre as luzes do luar. O estirar-se inquieto e constante dos meus lábios fulgura no rosto que se projeta sobre o mesmo espelho, íntegro e voraz, extasiado e demente. Meus ouvidos não me mentem as mentiras que queria me contar, gritam em meus tímpanos os diálogos descarnados entre mim. Rolam entre os meus cabelos rubros cachos de verbenas. O marfim que me cobre a pele reluz sob a luz incidiosa dos olhos que me miram, e são tão meus esses olhos. O som da minha voz, em veludo, arranhado, me alivia a língua que quer dizer o que se pode descobrir em mim. Então, me ponho a escrever, de alma desnudada, sobre a cama onde me amei. Sinto, nos milímetros da minha pele, o borbulhar explosivo da minha fotossíntese noturna. E nesse momento: o meu verde se enrubesce.

sábado, 25 de agosto de 2007

Little Girl Blue

"Pára, ouve, vê, repara, que para além de mim já não há mais nada..."

Blue, blue, blue... ouvindo o blues cantado por Janis, sinto me anestesiada. Tudo paralisado. As palavras me diminuem. Os sentimentos se perderam no meio do caminho, estáticos, nervosos. Busco o ar que me foge, tudo está em suspenso. O vento não vem me visitar. Busco ainda versos, que possam me acalmar o vazio, tão próximo e tão evidente. Um nó(s) na garganta ficou preso. Sento-me aqui, contando os pingos de chuva. O que, além disso, me resta a fazer? O que se deve fazer aqui além disso? Eu não sei o que se sente, só pressinto essa incompletude, desmoronam-se as paredes, as estradas se desfazem, tudo ao redor perde o seu contorno definido, ao olhar embaçado. Você pode não sentir o tempo, eu o sinto infinitamente. Tudo que a gente sempre sentiu tem que contar adiante ou seremos mesquinhos sucessivamente? E eu sei que ainda não começamos a ir adiante, por alguma razão que não consigo alcançar. Mas eu preciso seguir, e se estendo a mão e não a seguras, porque decides pelo "não", só me resta contar os pingos da chuva, que silenciosamente escorrem dentro de mim.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A realidade em palavras

As palavras possuem um poder de sedução do qual eu não consigo ficar imune. Através delas me realizo no pleno, no infindável, no impensável. Contudo, as palavras, em si, não são detentoras da verdade. Os silêncios que me cumprem, muitas vezes são capazes de exprimir a veracidade que nenhum palavra passível de ser proferida seria capaz de dizer. As palavras criam uma aparência de realidade, uma parte mínima do todo existente, pois não dizem o suficiente, uma vez que são criações humanas e, portanto, limitadas. Como Borges, queria me aproximar da palavra divinal, capaz de exprimir o todo. Desejo, como Tzinacan, mago da pirâmide de Qaholom, sair em busca da sentença mágica que fora gravada em alguma parte do universo, encotrar a escrita de Deus, me apropriar desse dizer. Inutilmente tento revisitar todos os lugares que conheci, e rever todas as palavras e símbolos existentes na terra e no céu, pois não há o cárcere, não há jaguar, nem tigres, não há nada. As palavras carecem. E no que falta, há beleza, há sedução, há busca infinda...


" (...) vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome os homens usurparam mas que nenhum homem tem olhado: o inconcebível universo." (Jorge Luis Borges, O Aleph)

À cada dia a sua agonia

"Eu quero a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida"



Inspiarada pelo texto de Carol, me pergunto, será impossível esse amor plácido, íntimo, eterno, cúmplice, de entrega absoluta? Onde está o amor que me mentiu??? A culpa, minha gente, é do cinema. Vemos filmes em que homens são capazes de ações heróicas por uma mulher, por seu amor, e desejamos ardentemente viver também essa experiência. E vem o questionamento inexorável: não seremos capazes de inspirar tal paixão e devotamento em outro ser humano? E de repente, já não serve que seja qualquer ser humano, exigimos que nos toque a pele, a alma, a carne, que cure nossas feridas, que nos coloque no colo, e nos conduza pela mão. E que embora faça tudo isso, nos deixe ser. Esse amor se torna cada vez mais impossível, e os amores fugazes acabem por substituir o tempo de se doar. Tudo fica pela metade. Às vezes me sinto como minha amiga Jaqueline, que todos os domingos no Porto comprava meia banda de manga, porque uma manga inteira era inacessível, ou seja, estamos sempre recebendo amor pela metade, ele por inteiro é muito caro, quase ninguém está mais disposto a pagar o preço. Como não quero a metade de nada, me disponho a pagar o preço que for, seja lindo, seja leve, seja com dor. Eu estou e você?

domingo, 19 de agosto de 2007

A flor da pele


Não basta um corpo e outro corpo, misturados num desejo insosso, desses que dão feito fome trivial, nascida da gula descuidada, aplacada sem zelo, sem composturas, sem respeito, atendendo exclusivamente a voracidade do apetite. É preciso percorrer as trilhas da alma, uma alma tateando outra alma, desvendando véus, descobrindo profundezas, penetrando nos escondidos, sem pressa com delicadeza... porque alma tem tessitura de cristal, deve ser tocada nas levezas, apalpada com amaciamentos... até que o corpo descubra cada uma das suas funções. Quando a descoberta acontece é que o ato de amor começa. As mãos deslizam sobre as curvas, como se tocando nuvens, boca vai acordando e retirando gostos, provando os sabores, bebendo a seiva que jorra das nascentes escorrendo em dons, é o côncavo e o convexo em amorosa conjunção. É Ressurreição !!! É nascer de novo: no abraço que aperta sem sufocamentos no beijo que cala a sede gritante, na escalada dos degraus celestiais que levam ao êxtase.


quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Vivo no que carece

"Algo me atrai que não está em mim e me impede a identificação com as coisas. Mas não são acaso as ausências que me cumprem? Não são os meus excessos – tão pobres – que me delineiam? Indago em vão e sei apenas, com uma triste lucidez, que os desastres não me limitam. Não existo no pleno, e sim no que carece. Assim a melodia se concebe e vibra, ao longo de uma existência que jamais sacia o meu desejo de variedade." (Lúcio Cardoso - Diário)

Decifra-me ou te devoro

Sou chuva forte, tempestade...
Sou chuva fina, desfolhando
os livros de madrugada...
Sou tímida, sou doida desvairada...
Sou tanta coisa.
Sou tão complicada,
mas, às vezes,
sou simplesmente eu.
Sou todas as estações do ano...
Mas, sobretudo, sou inverno.
Sou o céu azul no fim de tarde.
Sou o mar que me acompanha
todos os dias ao trabalho.
Sou alhos e bugalhos.
Sou “menina do anel de lua e estrela”.
Sou preguiça de tudo.
Sou o sim, mas, raras vezes, sou o não!
Sou palavras, amenas, cálidas,
ferozes, desdentadas...
Sou pensamento, sou razão...
Mentira, sou toda sentimento...
Sou lágrimas e risos.
Sou desleixada e sem juízo.
Sou taxionomista.
Sou morfologista.
Sou o desejo, mas superficial não!
Sou contradição.



Sonhos, Dreams, Sueños...

"I'm dreamer and when I wake, you can brake my spirit, if my dreams you take..."




Esta noite, eu tive um sonho que gostaria de contar a minha terapeuta. É conveniente que os pacientes narrem seus sonhos a seus analistas, contudo, me sinto extremamente desconfortável na hora de fazê-lo, por que não entendo a substância de que são feitos os sonhos. Essas imagens, que me ocorrem quando durmo, transgridem a racionalidade, se debatem na desordem cronológica e não satisfeitas com a confusão que provocam em meu íntimo, permanecem, horas, dias, até semanas, grudadas na minha mente, como o gosto de espinheira divina, ou o cheiro insuportável do Lapidus, como se tivessem sido injetadas nas minhas veias e dentro de mim circulassem até serem exaladas pelos meus poros e demais secreções. Resta-me, então, perguntar que significados subliminares encerram os sonhos? De que matéria emotiva eles se compõem? Que substâncias inconscientes eles aprisionam? De que é feita a sua essência virtual, vislumbrável, vizinha do vivível que me instiga e me devora? Permaneço presa ao sonho e ele permanece grudado em mim, até que tenhamos, eu e minha terapeuta, chegado às possíveis respostas para os sonhos, ou ainda, que tenha sido tarde demais para alcançá-las.

domingo, 12 de agosto de 2007

Minimalismo

"O coração na boca, antes da palavra louca que eu não digo!"



Hoje descobri o desejo de encontrar uma forma minimalista de estar no mundo. Minimalista, sob esse meu ponto de vista, quer dizer a prática cotidiana da simplicidade, voltar as aspirações para aquilo que é apenas essencial. Me desfazer dos supérfluos. Substituir a boca que por demais fala pelo silêncio expressivo dos olhares. Me despojar dessa ânsia de complexidade. Deixar a verborragia, que me é peculiar, ceder lugar ao não dito, ao não feito, ao não sentido. Não é um desejo somente, é uma necessidade de buscar a minha expressão mais simples, sem redundâncias, sem proselitismo, sem digressões. Talvez haja, nessa necessidade, uma incerta melancolia clandestina, uma desilusão desarmoniosa, sem compasso, sem razão. Preciso ser menos, pequena, mínima, ínfima, menor, e sempre decrescente, até o não ser. Talvez eu não precise ser minimalista, quem sabe budista seja melhor.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Sobre-humano


De onde vem essa sensação que me invade por noites infindas, que faz vibrar as pontas dos dedos, que treme a carne, que me queima a pele, e que mil vezes me liberta? Há algo de metafísico nessa sensação, o corpo já não é matéria e o espírito sobrevooa por espaços alienados, e se recusa terminantemente a voltar. Uma espécie de transe me consome em fogueiras imaginárias. Portas e janelas se abrem e eu não consigo me mover, o desejo de evadir não chega ao meu corpo, enquanto minha alma vagueia errante, ouvindo sons longinquos, sussurros quase inaudíveis, suspiros distantes. Permaneço acorrentada a essa sensação. E mesmo presa a esses grilhões, I flow, I fly away... Incontáveis, inenarráveis momentos em que nem sou corpo, nem sou espírito. De onde vem essa sensação: um nada, um nirvana, um prana, um inominável prazer? Terremotos não me fazem temer, o chão que treme sob meu corpo se liquefaz, e me derreto, me dissolvo, e me escorro junto com o ar que exalo inconstantemente. E vem a gratidão, uma imensa gratidão, por essa sensação que me concede, me deseperta, o desejo impetuoso de romper o silêncio da alma, de todas as almas, de viver, e fazer viver, todas infindas possibilidades oferecidas pela escuridão. Estou dentro dela, de olhos fechados, um grito rouco de mim ecoa. E não quero despertar. Não ainda, só mais um pouco, deixa estar ainda uma vez mais, e outra, e sempre, até que, como diz o corvo, o passado nunca mais, o passado nunca mais.

domingo, 5 de agosto de 2007

Coisas impossíveis

Descer do avião que não pousou
Dormir sem ter o que se sonhou
Fingir ser tudo o que não se é
Andar com um sapato menor que o pé
Ver a luz da lua ao meio-dia
Não comer de barriga vazia
Gozar quando não se tem tesão
Ouvir barulho e achar que é canção
Amar sem ser correspondido
Remendar o que foi corrompido!

sábado, 4 de agosto de 2007

Eu não sou a multidão

Não, eu não sou a multidão, não me corrompo pelo belo, perfeito e satisfatório. É a dor que me fascina. Não quero as máscaras que escondem as cicatrizes, quero ver as feridas expostas, a carne em sangue vivo, o ser obscuro que reside na sombra de cada um de nós. O que me fascina e me condena é a nudez da alma, que mesmo tardia se revela. Não, eu não sou a multidão, não quero a calmaria ou a mansidão, quero a tormenta, as tempestades que me ardem em fogueiras incandescentes, nas paixões insandecidas, sem sentido e sem noção. Não me interessa a boca fria, o olhar sem rubor, a vida vazia, o coração sem dor. Eu desejo é penetrar na agonia. É isso que me alivia. É isso que eu, mais e eternamente, desejaria. É pelas veias que meu coração arrebenta, mas isso é o meu segredo, por isso, seja discreto, vê se não comenta.